PASTORAL FÉ E POLÍTICA

Arquidiocese de São Paulo

ptarzh-CNenfrdehiitjarues

Temos 144 visitantes e Nenhum membro online

Internação Forçada de Pessoas: Uma Breve Abordagem

O tema é candente e ocupa boa parte dos holofotes da discussão pública atual, e surge atrelado à questão das drogas. Nesse contexto, o apelo para a internação se desenvolve na intersecção, por exemplo, do afã de defesa social, da ética, do papel da psiquiatria, das discussões sobre a autonomia e capacidade do indivíduo, do mercado lucrativo do fomento dos medos, dos preconceitos, da religião e dos direitos. É no desfazimento deste emaranhado que pode residir alguma visão mais clara da problemática.


Para ao menos iniciar o assunto, alguns mitos precisam ser desconstruídos e algumas premissas estabelecidas.

Computamos na conta da droga o que a ela não poderia ser creditado: miséria, esfacelamento de laços, incapacidade de diálogo, desestruturas familiares, omissão estatal na implementação de políticas públicas contínuas. As causas são erroneamente tomadas como efeito da droga, que, não poucas vezes, é a saída colocada à disposição do indivíduo para a dor de uma realidade dura e nua.

A autonomia de toda e qualquer pessoa, inclusive da pessoa que usa, abusa ou é dependente de drogas, é premissa no Estado Democrático de Direito. O mito de que o "viciado" é alguém que não sabe o que quer se presta a legitimar invasões violentas. O autoritarismo se traveste de salvacionismo: é necessário proteger a pessoa dela mesma, importando menos o custo humano e psíquico que isso implica. A pessoa é usada como meio "para o seu próprio benefício" e em especial a socialmente vulnerável é vista como uma constante ameaça contra os outros e contra si própria, numa visão paternalista típica de regimes autoritários, na contramão do imperativo da autodeterminação do sujeito e da dignidade humana, bases da ordem democrática.

A premissa é a capacidade de toda e qualquer pessoa de fazer escolhas e não o contrário. Uso de drogas não gera sempre dependência; dependência não implica necessariamente incapacidade, assim como não aponta obrigatoriamente para a internação, que tampouco é sinônimo de tratamento.

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1, III) e tem como faceta principal a autonomia da vontade na determinação de seus valores e objetivos; a liberdade é um direito fundamental (CF, art. 5, II). O Código Civil não inclui os "viciados em tóxicos" nem os "ébrios habituais" no rol dos absolutamente incapazes. Nesse contexto, a liberdade pode se estender ao limite de não ser submetido a qualquer tratamento.

Anthony Daniels, experiente psiquiatra inglês, define a discussão pública sobre drogas como um "processo de aceitação de falsidades" e pontua que a premissa de que o viciado é um indefeso mascara a verdade de que "a única coisa que pode ajudá-lo a resolver o problema é a sua decisão". A vontade, com suporte do tecido social, continua a ser a melhor mola propulsora das superações ou minimizações dos problemas pessoais relacionados às drogas.

Aqui entra outra esquecida constatação nesse debate: a internação forçada pode agravar o quadro. A força introjeta subserviência ou revolta, e reforça a situação de exclusão e estigma já trazida pela pessoa. O gesto que interna também é o gesto que cria marcas no internado. O Estado, ao internar à força e isolar, pode estar simplesmente repetindo uma realidade psíquica de abandono já ocorrida no passado.

Posterga-se assim o momento da promoção da maior autonomia, responsabilização e elaboração. Assim, a recaída, estimada em 95%, é a volta para o universo do qual a pessoa nunca saiu.

Não por acaso a Lei 11.343/06, mais conhecida na sua faceta repressiva, emoldura o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e traz como premissa a busca da reinserção social de usuários e dependentes de droga (artigo 3, I); como princípio o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade (artigo 4, I); como objetivo, contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso de drogas (artigo 5, I) e como diretriz a existência de um projeto terapêutico individualizado orientado para a inclusão social (artigo 22, III).

Sob esse prisma, isolar para incluir, senão ilegal, soa no mínimo contraditório. Sob esse prisma, tratar a questão como exclusivamente médica soa tecnocrático.

Há os que, inspirados na Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/01), sustentam que a internação é possível, desde que usada excepcionalmente, com laudo médico prévio e circunstanciado, e após se demonstrar que os recursos extra-hospitalares foram insuficientes para aquele caso concreto.

No entanto, a imensa maioria das pessoas depende dos equipamentos que deveriam ser postos à disposição pelo poder público - Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, Programa de Saúde da Família, Consultórios de Rua, leitos em Hospital Geral para desintoxicação, Centros de Convivência etc. - o qual, via de regra, tem sido histórica e eloqüentemente omissivo na implementação e manutenção de políticas públicas integradas e de qualidade para a solução ou ao menos minimização deste problema. Pergunta-se: se o poder público retira da pessoa a oportunidade de se valer das possibilidades de tratamento em meio aberto, como sustentar que foram ineficazes se sequer existiram como exige o arcabouço legal?

O que foi construído passivamente pela soma das omissões por anos e décadas não pode ser resolvido num estalar de dedos, com uma única resposta simplista. Necessitamos adequar a resposta à complexidade do problema, que precisamente por ser complexo, não se soluciona com uma saída simples, tomada como resposta geral para todos os males da droga.

Em nome da defesa social, o direito penal é o único ramo do Direito, num Estado Democrático, legitimado a cercear gravemente a liberdade alheia contra a vontade do individuo.

A internação como regra é medida usada nos séculos passados: volta-se a tratar do problema como se ele abrangesse uma massa amorfa de pessoas para as quais se impõe uma mesma saída em abstrato. O banimento de uma determinada categoria de indivíduos da vida coletiva não é permitido- aliás, marca tristes capítulos da história da humanidade. A memória deve nos ajudar a questionar se não estamos simplesmente reeditando um episódio já vivido.

A histórica omissão dos poderes públicos se transformou em histeria social: na busca para uma rápida solução para a chaga exposta, qualquer solução parece servir, desde que afaste o problema de nosso campo de visão.

 

FONTE: Texto reproduzido a partir de seu original divulgado pelo Jornal Carta Forense por sugestão de Caci Amaral, coordenadora da Pastoral Fé e Política da Arquidiocese de São Paulo

 

A AUTORA:

Daniela Skromov de Albuquerque

é Defensora Pública do Estado de São Paulo, Coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos. É especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Pode ser contatada pelo site do Jornal Carta Forense.

Seleções PFP ASP

Seleções da PFP ASP
Textos selecionados pelos membros e colaboradores da Pastoral Fé e Política da Arquidiocese de São Paulo, com temáticas e autores variados. Para qualquer crítica ou sugestão, fale conosco por meio de nosso formulário de contato.